quarta-feira, 26 de abril de 2017

BARCO VAZIO



Tive um sonho como tantos outros que me invadem as madrugadas frias. Caminhava por um plano de névoas enquanto a escuridão me tragava, quando vi, entre céus em raios e terras flageladas, anjos e homens se digladiando em existências inglórias.
Ressoavam os anunciadores dos anjos com trombetas estrondorosas: Ó terra ingrata por onde um dia passamos como profetas, és povoada de seres em plenitudes espúrias, que andam a salpicar luzes e honras nos compassos dos desalinhos, enquanto naufragam nos próprios sombrios submundos.
Ó serena morbidez do grande reino de egos sencientes, o ópio do vício entorpece vossas mentes em espectros de falsas luzes, enquanto  xompondes melodias e versificações a disfarçar a síndrome do mal que há em vossas razões sencientes e em vossos cernes entenegrecidos. Assim é que viveis a regozijar incautezes em vossos desertos e quimeras, encharcados de odores impuros.
Ó seres profanos do santo nome, entendeis vós é de bailes de máscaras e de gêneses apócrifas que espalhais a toda a orbe. E se há algum lugar pior que o inferno que pregais entre vós mesmos, teríamos que vos mostrar as faces funestas perante um espelho fiel.
Mas quando vossas vidas vagarem, vermes esperam por vossas carnes, enquanto nos vireis com a alma enodecida, em pedidos de alívios e paraísos solenes.
E é nessa única hora de translucidação de vossas humanidades chagadas, que nos podereis tornar irmãos e coabitar conosco o reino santo de Deus.”

Elevados que foram a um grande monte para que alcançassem a proximidade dos céus, os menestréis dos neandertais avançaram a retrucar em imperativos:
“Em meio às candidezes melodiadas de vossas arpas oníricas e aos brados retumbandes de vossas trombetas a buscarem o desafio de morte, percebe-se que pouco sabeis dos invencíveis.
Não sabeis o que são noites de enlaces de cândidos amores ou de cálidos desejos.
Não sabeis o que são chuvas de fogo em rancores que nos varrem as entranhas de modo severo, nem carpintarias de esperanças ébrias de um dia podermos ter alguma redenção salvífica para nossa condição abnormal.

Não sabeis que dos sonhos nos fazemos reféns do porvir, por simplesmente não termos a força de sermos como vos considerais a vós próprios: inconspurcados.

Muito menos podeis saber que, do poder de construir imagens em verbos e insânias, convivemos com o doloroso paradoxo de se possuir bem e mal intrínsecos, mesmo que nos esforcemos para os apartarmos e exterioridades despercebidas.

Não sabeis vós, enfim, o que é uma existência inglória por grandiosa condição abnormal de simplesmente ser um humano.”

Enquanto uma sinfonia mórbida ecoava nos ares no momento mais árduo do combate, proferiram os anjos uma sentença severa:
“Vossos corações engerelados e vossas sombras mórbidas são como um veneno aos céus, dos quais podemos vos enviar ao décimo ciclo do inferno, tão terrível que nem Dante, vosso antepassado, pôde conceber; de onde jamais podereis sair do horripilante castigo por vos teres ousado a enfrentar os anjos de vosso criador.”

Ao que, rompendo as fileiras dos demais digladiadores terrenos, tomou a palavra o homem que ousara criar Zaratustra, trazendo à boca a arma fatal:

“E vós, anjos sublimes, que nem deuses e nem infernos podeis ter, por serdes, como eles, tão somente mais uma de nossas criações a nos servirem, em crenças ou descrenças, na plenitude de nossa famigerada capacidade de inaugurar imagens?

Sentencio-vos, a vós que vos dizeis filhos de um deus criador, à condição inevitável de que sois crias dos parturientes humanos, e vos podemos tornar mortos mediante um relance de negritude do pensamento.”
Ouve-me a cacofonia
da alma na cinzenta manhã
da vida.

Sente
como se me enraizou
a sincera inocência
perdida.

Descortina, sob
os desatinos, a áspera essência
escondida.

Lumia, sob
a bruma, a tênue luz
suicida.

Decifra, sob
a pluma, os ermos da ave
ferida.

Desvenda-me por
completo o verso da carne,
o mistério do espírito e a magia
da poesia.

E compreende,
enfim, por que me visto
arlequim,

e não te
posso mais ofertar,
em teu cândido sonho,
um falso querubim.

Mas,
mesmo assim,
não me negues o cálido abraço
que a silente
dor,

a essa guardo só
pra mim!

Então, os descendentes dos neandertais volveram seus olhares incrédulos e impiedosos aos céus, abandonando suas criações mais sublimes – feitas tão somente para conter o bem –, que ousaram se libertar do intento para o qual foram criados.


E os anjos se foram empalidecendo e se apagando dos céus na mais profunda angústia.

E os homem retornaram, em insânias áureas reluzentes, ao reino onde inauguravam vazios e nadas com imensidades faustas.

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