segunda-feira, 21 de agosto de 2017

A SURPRESA



Ontem à noite,
ela se vestiu lindamente,
maquiou-se como há muito não fazia
e veio, toda feliz e sorridente,

convidando-me
para sairmos sozinhos – sem nossos filhos –,
o que, de tão raro, deixou-me deveras
com a pulga atrás da orelha.

Depois de uns goles vinho
e de algumas lembranças quase perdidas,
que ela invocara propositadamente,
chamou-me para dançar
quando tocava “The power of love”,
com Céline Dion;

e sussurrou-me ao ouvido
se eu sabia que dia era aquele:
forcei a memória fragmentada, estiquei-me todo
para lembrar algo, e só então percebi
que fazia exatamente vinte anos
de nosso casamento.

Percebendo que eu não conseguia
me dissimular na inesperada situação,
em vez de ficar chateada com minha
displicência insípida


– o que lhe era de pleno direito –,
ela deu-me um abraço e um beijo demorados,
afagou-me os cabelos pardos
e disse que sempre houvera me amado;

e eu ali perante a mulher
que, em toda sua vida, foi tocada só por mim,
e a única a quem, em toda minha vida,
sincera e verdadeiramente amei;

a me perguntar,
diante daquele clarão de realidade,
como – mesmo assim – fui capaz de me voar,
canina e escondidamente, por céus tantos terreiros
encharcadose por tantos céus
​​​​​​​contaminados.

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